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A condessa Greffulhe, o mecenato na ciência e o casal Curie


Apresento aqui apontamentos de viagem sobre a condessa Greffulhe, a partir dessa bela biografia escrita por Laure Hillerin. Adquiri o livro durante a viagem que fiz a Paris em 2018, motivado pelo livro Comment j'ai vu 1900, de Pauline de Broglie, ou condessa de Pange, irmã de Maurice e Louis de Broglie. Ela falou de sua tia a condessa Greffulhe, principal modelo para a duquesa Oriane de Guermantes, de Marcel Proust. Imediatamente dei uma googada no nome da condessa e achei o livro de Laure Hillerin, que adquiri na Fnac da Avenue des Champs-Élysées.

Nesses quase quatro anos, o livro ficou de molho na minha prateleira dos cientistas franceses, e agora me acompanha nesta viagem primaveril. Trata-se de uma saborosa biografia de uma bela e aristocrática mulher nascida em 1860 e que teve notável participação na vida social e cultural de Paris durante sua Belle Époque. Entre tantos que admiravam sua beleza, Proust uma vez disse: Je n’ai jamais vu une femme aussi Belle. Nem precisa saber francês, basta consultar o tradutor do google para descobrir o significado da frase de Proust. Ela era de uma família aristocrática, mas não tão rica quanto a do visconde Henry Greffulhe, com quem casou-se aos 18 anos de idade, onze anos mais nova que o marido. Seria melhor dizer que as famílias arranjaram o casamento, ou, de modo mais ácido, dizer que sua família lhe vendeu. Na sequência de um casamento sem amor, uma vida conjugal infeliz, convivendo com incontáveis amantes de seu marido, todas atraídas pela fortuna daquele herdeiro sem qualquer atrativo físico e intelectual. Para ele, Marie-Joséphine-Anatole-Louise-Élisabeth de Riquet de Caraman-Chimay era apenas um troféu de primeira classe. Ao que se depreende da biografia, ela teve um único amante: o belo italiano Don Roffredo Caetani, príncipe de Bassiano.

Por esta breve introdução é possível imaginar a riqueza social do círculo de amizade de Élisabeth, de reis e príncipes a políticos, governadores e presidentes importantes; de músicos, pintores, escultores e escritores, a renomados cientistas. Mas, nesta primeira crônica quero me deter na sua relação com o casal Marie e Pierre Curie, com os quais a condessa se encontrou pela primeira vez em algum dia depois do prêmio Nobel de 1903. O intermediário do encontro foi Georges Urbain, diretor da faculdade de físico-química da Sorbonne. Em 1907 Urbain descobriria o elemento químico lutécio. E tal qual Caio Mecenas, a condessa Greffulhe passou a usar sua influência sócio-política para a criação do Institut du Radium (IR), o sonho dourado do casal Curie. Essa parte da história dessa importante instituição não está registrada nos arquivos oficiais, nem da Sorbonne e nem do Instituto Pasteur (IP). Para escrever seu livro, Laure Hillerin usou os arquivos da família Greffulhe.

É interessante fazermos um cotejamento entre as descobertas de Laure e o que consta no artigo de Bénédicte Vincent, Genesis of the Pavillon Pasteur of the institut Du Radium of Paris (History and Technology: An International Journal, 13:4, 293-305, 1997), uma respeitável referência acadêmica, que, como outros textos acadêmicos, não faz qualquer referência à condessa Greffulhe.

Na Wikipedia a condessa é mencionada, mas não há qualquer referência ao livro de Laure Hillerin. Talvez o texto da Wikipedia tenha sido publicado antes de 2014, ano do lançamento do livro de Laure, mas o texto da Wikipedia foi revisado recentemente (13/3/2022). Imagino que os autores da Wikipedia tenham conhecimento do alentado texto de Laure, razão pela qual não acho correto sua não inclusão entre as referências.

Deixemos as querelas de lado e vamos ao que interessa.

Tanto Bénédicte, quanto Laure destacam que o IR surgiu de um processo de barganha entre a Sorbonne e o IP, mas a sequência de eventos é apresentada de modo um pouco diferente por elas. 


A sequência de eventos narrada por Bénédict Vincent

De acordo com Bénédicte, tudo começou em 1907, quando o IP recebeu, do rico mecenas Daniel Ifla Osiris, uma herança de 30 milhões de franco-ouro, o que segundo Laure correspondia a 400 mil francos. No ano seguinte, o médico Emile Roux, diretor do IP, pensou em criar um novo laboratório para Marie Curie no IP, mas a Sorbonne tinha outros planos. Em 1909, Louis Liard, vice-reitor da Sorbonne sugeriu a construção de dois laboratórios, um dedicado ao estudo de fenômenos radioativos e outro dedicado ao estudo de aplicações médicas desses fenômenos O primeiro seria dirigido por Marie Curie, e o segundo seria dirigido por alguém indicado pelo IP. Dessa discussão surgiu a ideia de criação do Institut du Radium, com os dois citados laboratórios. Aquele ligado ao IP ficou conhecido como Pavilhão Pasteur. A Sorbonne contribui com o terreno e 200 mil francos, enquanto o IP contribuiu com 400 mil francos.

Os registros históricos sugerem que o IP ainda não tinha uma posição muito bem definida quanto aos seus projetos para o Pavilhão Pasteur. Em várias  fontes mencionam-se diferentes tipos de laboratório: dedicado ao estudo de aplicações contra doenças; um laboratório para estudo do rádio do ponto de vista biológico; um laboratório dedicado às aplicações médicas dos materiais radioativos; um departamento biológico do IR; laboratório de radiofisiologia, a denominação que prevaleceu. De acordo com Bénédict, essa imprecisa variedade de nomes indica que o Pavilhão Pasteur só foi admitido pelo IP por causa do processo de barganha. Nesse sentido ela questiona: os dois laboratórios do IR colaboraram logo depois da Primeira Guerra Mundial? A equipe do IP teve algum proveito da expertise dos físicos em relação à medida da radioatividade usada em terapias? Resposta: foram poucas as colaborações no início, mas depois de 1921 os dois laboratórios passaram a trabalhar de modo mais associativo, sobretudo depois do suporte financeiro ofertado por Henri de Rothschild, que levou à criação da Fundação Curie, cuja reunião do primeiro conselho se deu em 18 de janeiro de 1921, com a presença de Marie Curie, Claudius Regaud (diretor do Pavilhão Pasteur), Henri de Rothschild, Émile Roux (diretor do IP) e Paul Appell (reitor da Academia de Paris). Em 27 de maio a Fundação Curie é legalmente reconhecida e considerada de utilidade pública.


A sequência de eventos narrada por Laure Hillerin

Para Laure, a história começa em 1904, quando o vice-reitor da Sorbonne, Louis Liard, busca recursos financeiros para adquirir um terreno de 30 mil metros quadrados entre a rua Saint-Jacques e a rua d’ulm, para criar um instituto de física e química. Laure deixa a entender que o terreno foi adquirido com a ajuda da condessa Greffulhe, mas não apresenta qualquer documento comprobatório. O fato é que a Sorbonne não dispunha de recursos para construir o instituto, e a condessa vai a campo em busca desses recursos.


Em março de 1907 ela monta um dossiê para solicitar 500 mil francos ao industrial e filantropo estadunidense Andrew Carnegie. Ela não o conhece pessoalmente, e pede à sua velha amiga, Madame Roosevelt (mãe do futuro presidente dos EUA) que lhe faça chegar o dossiê às mãos de Carnegie. O dossiê contêm um plano detalhado do projeto, feito por Pierre Curie um pouco antes de sua morte, em 19 de abril de 1906. Ela menciona que o laboratório deverá ser a semente de um instituto científico internacional, para o qual ela solicita um milhão e meio de francos.

A ajuda financeira veio sob a forma de bolsas de estudo da recém criada Fundação Carnegie, e sob a forma de uma doação, cujo valor não há registro. Em uma carta enviada à condessa Greffulhe, em 11 de fevereiro de 1908, madame Curie informa:

Finalmente, não se deve esquecer que uma importante doação devido à generosidade do Sr. Carnegie foi entregue ao laboratório Curie e que esta doação aumenta a razão de ser de um laboratório definitivo como o Institut Curie.

Mas, um ano antes o projeto do novo laboratório e do instituto parecia irrealizável. Élisabeth pediu ao seu amigo Gustave Le Bon para ler seu dossiê, talvez para saber se algo poderia ser melhorado. Foi uma péssima ideia. Vejamos alguns comentários de Le Bon, colocados nas margens do manuscrito da condessa e em cartas a ela dirigida:

- Em suma, projeto vago, sem objetivo preciso. Sugiro que Madame Greffulhe o abandone;

- Eu ficaria muito surpreso se sua confiança fosse justificada. Ele realmente teria que não saber o que fazer com seu dinheiro ou ter uma imaginação extremamente pobre para não colocar seus milhões em melhor uso;

- O rádio jamais será isolado;

- Trata-se de um projeto absolutamente execrável;

- Eu uso este adjetivo apenas porque não consigo encontrar um mais forte. Estamos saturados de laboratórios inúteis e vazios.


Gustave Le Bon, um cientista amador confrontando cientistas profissionais

Aqui devo fazer um parêntese na revisão do livro de Laure para especular a respeito dessa acidez de Le Bon. Faço isso a partir do artigo de Mary Jo Nye, Gustave LeBon's Black Light: A Study in Physics and Philosophy in France at the Turn of the Century (Historical Studies in the Physical Sciences, Vol. 4 (1974), pp. 163-195). Tive conhecimento de Le Bon quando li o trabalho de Roberto de Andrade Martins, Como Becquerel não descobriu a radioatividade (Cad. Cat. Ens. Fís., Florianópolis, 7 (Número Especial): 27-45 , jun. 1990). Na sequência dessa leitura terminei achando o artigo de Mary Jo Nye.

Certas situações na história da ciência impressionam o observador como peculiarmente indicativas da complexa relação [entre o pensamento científico e o meio intelectual e social]; uma é a "descoberta" do final do século XIX de uma nova radiação pelo francês Gustave LeBon. Sua radiação, paradoxalmente batizada de "luz negra", entrou nas memórias da Academia Francesa de Ciências ao lado dos raios X de Roentgen e dos raios de urânio de Becquerel; sua explicação da relação entre seus raios e os de seus colegas mais ilustres provocaria uma controvérsia veemente por uma década. O próprio LeBon era um amador de alto nível — um homem fora do sistema de universidades e liceus da França — que começou seus primeiros experimentos em física depois de trinta anos de escritos populares sobre medicina, antropologia e psicologia. No entanto, seus experimentos e ideias foram levados muito a sério por muitos membros da elite científica francesa, assim como por membros da elite intelectual. Por que isso ocorreu?

Não cabe aqui uma análise exaustiva do artigo de Mary Jo Nye para entender o porquê da consideração recebida por Le Bon, de parte da comunidade científica francesa do fim do século 19. Basta destacar alguns pontos de sua análise:

- Le Bon era amigo de membros importantes da Academia (p.ex. Poincaré), homens com quem compartilhava pontos de vista políticos e filosóficos, em vez de científicos;

- Ele era antirracionalista e antimaterialista, razão pela qual enfatizava a intuição e a espontaneidade do raciocínio, em vez das ênfases tradicionais da ciência, tais como mecanismo, determinismo e materialismo;

- Discordou dos resultados obtidos por Marie Curie, entre os quais ela mostrou que apenas o tório produzia efeitos comparáveis àqueles apresentados pelo urânio;

- Jean Perrin referia-se aos experimentos de Le Bon como uma extraordinária e confusa mistura de erros e de resultados acurados; 

- Rutherford e Thomson referiam-se aos experimentos de Le Bon como justificativa para apresentar seus resultados objetivando esclarecer os erros de Le Bon;

- Em 1905 Le Bon publicou o livro L'Evolution des Forces, no qual requisitava a prioridade pela descoberta da natureza e da generalidade da radioatividade. Foi fortemente criticado por Jean Perrin, amigo íntimo do casal Curie, o que deixou Le Bon furioso. 

Tendo em conta essas informações extraídas do artigo de Mary Jo Nye, fica fácil compreender a forma como Le Bon respondeu à condessa Greffuilhe.


A criação do Instituto Curie

De acordo com Laure, os 400 mil francos doados por Daniel Iffla ao IP deveria ser destinado à construção de um museu para abrigar as obras pertencentes à Escola de Belas Artes de Paris. Foi a condessa Greffulhe quem sugeriu a alocação dos recursos na criação do Instituto Curie. Essa informação é diferente daquela contida no artigo de Bénédicte Vincent, cuja data da doação seria 1907. A sugestão da condessa teria sido encaminhada ao diretor do IP pelo deputado Denys Cochin, amigo da condessa. Finalmente, em 15 de dezembro de 1909 acontece a reunião do conselho do IP mencionada por Bénédicte, na qual se decide pela construção do IR. Em 1970, a Fundação Curie e o Instituto do Rádio são fundidos para a criação do Instituto Curie, o sonho inicial da madame Curie.   

capa livro laure hillerin


assinatura folha de rosto livro laure
                          hillerin


capa livro pauline de broglie




primeiro laboratorio de marie curie

Primeiro laboratório usado por Marie Curie nas suas investigações sobre a radioatividade


bemont, pierre e marie curie

Na presença de Pierre Curie
(ao centro) e do químico Gustave Bémont, Marie manipula o equipamento com o qual
realizou seus experimentos
sobre a radioatividade


equipamentos usados por marie
                                  curie

Equipamentos usados por Marie e
Pierre Curie: (A) câmara de ionização; (B) balança de quartzo; (C) eletômetro

greffulhe-curie-fachada-instituto-do-radio

Fachada do Instituto do Rádio, nos anos 1920

caixa contendo 1 g de radio

Caixa contendo 1 grama de rádio. Doação do presidente dos EUA, Warren G. Harding, em 20 de maio de 1921.


instituto curie atual

Instituto Curie em 2020

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