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Convém um esclarecimento sobre o título deste material. Na literatura sobre ensino de física no Brasil, é muito comum o uso da expressão física moderna e contemporânea (FMC), que, embora gramaticalmente correta, pode induzir a um equívoco muito sério; ela sugere a existência de uma área de ensino sobre “física moderna e contemporânea”. Na verdade, existem duas áreas: “ensino de física moderna” e “ensino de física contemporânea”. É recorrente na literatura brasileira, a publicação de artigos sobre FMC, que tratam tão somente de radiação de corpo negro, ou efeito fotoelétrico, ou teoria da relatividade restrita, ou modelo de Bohr. Esses assuntos não fazem parte do que conhecemos como física contemporânea, eles fazem parte do conhecemos como física moderna. Portanto, é um equívoco colocar esses assuntos em uma área sobre física contemporânea. Por outro lado, há uma demanda pela inserção de física contemporânea no ensino médio. Acho isso um equívoco, do ponto de vista pedagógico e da educação cidadã. O importante não é abordar conceitos de física contemporânea, mas abordar conceitos de física moderna presentes na tecnologia contemporânea (FMTC). No estágio em que nos encontramos, de uma sociedade da informação onde crianças de 3-4 anos manipulam com desenvoltura equipamentos de alta tecnologia, como telefones celulares e pranchetas eletrônicas, entre outros, é inconcebível que na sala de aula essas crianças e adolescentes não tenham a oportunidade de conhecer a ciência que está por trás desses dispositivos. A falta desse conhecimento contradiz a ideia de uma educação cidadã, na medida em que a continuar o currículo do ensino básico com a física do século 19, teremos adultos que jamais conhecerão a ciência que está por trás dos dispositivos que manuseiam. Portanto, como parte relevante no cotidiano da sociedade contemporânea, a FMTC deve ser incorporada ao currículo da educação básica. Com o presente material espero fornecer conteúdo apropriado para que professores de física no ensino médio o utilizem para a transposição didática referente à FMTC. A tomografia computadorizada, tema gerador deste artigo,
é uma das mais recentes aplicações dos raios-X, e os
raios-X é um dos geradores da física moderna. Neste mapa
conceitual são apresentados os principais eventos
geradores da física moderna. Este cenários pode servir
para orientar transposições didáticas para o ensino médio,
cujos fundamentos serão aqui abordados no presente e nos
artigos seguintes.
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Raios-X, bem antes da tomografia computadorizada
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Em qualquer bom hospital
deparamo-nos com esse tipo de placa indicadora
de exames médicos de nova geração. É o que se
pode chamar de tecnologia médica contemporânea.
Em qualquer um desses exames indicados na placa,
temos conceitos de física como fundamentos
básicos. É possível a partir dessa placa
elaborar o cenário de boa parte da física
ministrada no ensino médio. No presente artigo e
nos que se seguirão pretendo apresentar os
fundamentos da física pertinentes a essas
tecnologias.A descoberta dos raios-XO texto que se segue é uma versão simplificada dos artigos que publiquei no portal do IF-UFRGS (1) e na revista Ciência Hoje (2). A primeira vez que o físico alemão Wilhelm
Conrad Roentgen percebeu a existência dos
raios-X foi em 8 de novembro de 1895. Ele
estava observando a condução de eletricidade
através de um tubo de Crookes, ou seja, estava
investigando os raios catóticos, quando
observou uma inesperada luminosidade em uma
tela coberta com o material fluorescente
platinocianeto de bário. Roentgen girou a
tela, de modo que a face sem o material
fluorescente ficasse de frente para o tubo de
Crookes; ainda assim ele observou a
fluorescência. Foi então que resolveu colocar
sua mão na frente do tubo, vendo seus ossos
projetados na tela. Foi a primeira
radiografia, não registrada. A primeira
radiografia registrada foi obtida com a mão de
sua esposa, Anna Bertha Ludwig. Essa fantástica descoberta teve estrondosa repercussão, não apenas na comunidade científica, como também nos meios de comunicação de massa. Por exemplo, em 1896, menos de um ano após a descoberta, aproximadamente 49 livros e panfletos e 1.000 artigos já haviam sido publicados sobre o assunto. Um levantamento feito por Jauncey no jornal norte-americano St. Louis Post-Dispatch, mostra que, entre 7 de janeiro e 16 de março de 1896, quatorze notas foram publicadas sobre a descoberta e outros estudos relacionados. Todavia, as mais conhecidas referências a essa descoberta tendem a minimizar o mérito do seu autor, enfatizando o aspecto fortuito da observação. Essa visão distorcida que se tem do trabalho de Roentgen só é eliminada quando se toma conhecimento dos seus relatos. Com 50 anos de idade na época da descoberta dos raios X, e menos de 50 trabalhos publicados, Roentgen tinha como temas prediletos as propriedades físicas dos cristais e a física aplicada (em 1878 apresentou um alarme para telefone, e em 1879, um barômetro aneróide). Sobre os raios X publicou apenas três trabalhos, e ao final da sua vida não chegou a ultrapassar a marca dos 60. Para um detentor do Prêmio Nobel de Física, esta é uma quantidade relativamente inexpressiva. Essa "pequena" produção talvez seja consequência do seu rigoroso critério de avaliação dos resultados obtidos. Pelo que se sabe, ele era tão cuidadoso, que jamais teve de revisar os resultados publicados. Lendo seus dois primeiros artigos sobre os raios X, percebe-se a acuidade do seu trabalho. Além da inegável importância na medicina, na
tecnologia e na pesquisa científica atual, a
descoberta dos raios X tem uma história
repleta de fatos curiosos e interessantes, e
que demonstram a enorme perspicácia de
Roentgen. Por exemplo, Crookes chegou a
queixar-se da fábrica de insumos fotográficos
Ilford, por lhe enviar papéis "velados". Esses
papéis, protegidos contra a luz, eram
geralmente colocados próximos aos seus tubos
de raios catódicos, e os raios X ali
produzidos (ainda não descobertos) os velavam.
Outros físicos observaram esse "fenômeno" dos
papéis velados, mas jamais o relacionaram com
o fato de estarem próximos aos tubos de raios
catódicos! Mais curioso e intrigante é o fato
de que Lenard "tropeçou" nos raios X antes de
Roentgen, mas não percebeu. Assim, parece que
não foi apenas o acaso que favoreceu Roentgen;
a descoberta dos raios X estava "caindo de
madura", mas precisava de alguém
suficientemente sutil para identificar seu
aspecto iconoclástico. Para entender porquê, é
necessário acompanhar a história dos raios
catódicos.
. Raios Catódicos e Raios Lenard versus Raios-XEm 1838, Faraday realizou uma série de experimentos com descargas elétricas em gases rarefeitos, ligando definitivamente seu nome à descoberta dos raios catódicos. Todavia, devido às dificuldades técnicas com a produção de vácuo de boa qualidade, esses trabalhos só tiveram novo impulso vinte anos depois. Essa nova fase, iniciada por volta de 1858, pelo físico alemão Julius Plücker, produziu resultados que desafiaram a inteligência humana durante quase quarenta anos, até que um bom entendimento do fenômeno fosse obtido. A denominação raios catódicos (Kathodenstrahlen) foi introduzida pelo físico alemão Eugen Goldstein, em 1876, ocasião em que ele apresentou a interpretação de que esses raios eram ondas no éter. Uma interpretação contrária, defendida pelos ingleses, também chamava a atenção do mundo científico da época. Para Crookes, os raios catódicos eram moléculas carregadas, as quais constituiam o quarto estado da matéria (essa denominação é hoje usada quando nos referimos ao plasma, que é exatamente o que se tem quando se produz uma descarga elétrica num gás rarefeito!). Em 1897, Thomson encerrou a polêmica, demonstrando que os raios catódicos eram elétrons. Ao longo desses 40 anos, diversas observações, comentários e hipóteses sugerem que vários pesquisadores andaram "rondando a porta da descoberta dos raios-X". Nos seus dois primeiros trabalhos, Roentgen se refere às possibilidades que Lenard teve de fazer a descoberta. Num artigo publicado em 1880, Goldstein
menciona que uma tela fluorescente podia ser
excitada, mesmo quando protegida dos raios
catódicos. Publicado em alemão e em inglês,
este trabalho deve ter chegado ao conhecimento
de quase todos os pesquisadores envolvidos
nesses estudos, no entanto, nos quinze anos
seguintes ninguém questionou o fato de que a
tela fluorescia, mesmo sem ser atingida pelos
raios catódicos! Também Thomson chegou perto; um ano antes da descoberta dos raios-X, ele relatou que havia observado fosforescência em peças de vidro colocadas a vários centímetros de distância do tubo de vácuo. Entre todos os pesquisadores, Lenard parece ter sido aquele que mais se aproximou da descoberta de Roentgen. Dando continuidade aos trabalhos de Heinrich Hertz, Lenard realizou experiências para verificar se os raios catódicos produzidos no interior de um tubo de Crookes poderiam ser observados no exterior. Para tanto, construiu um tubo de Crookes com uma pequena janela de alumínio (espessura de aproximadamente 0,0025 mm) no lado oposto ao catodo, e passou a observar os raios catódicos fora do tubo, através da sua interação com materiais fosforescentes. Posteriormente esses raios ficaram conhecidos como raios Lenard. Em 1894 Lenard publica, na revista alemã Annalen der Physik, suas primeiras observações, entre as quais destacam-se:
De tudo que se sabe hoje, conclui-se que os
raios Lenard eram constituídos de raios
catódicos (elétrons) e de raios-X, mas ele
acreditava que eram apenas raios catódicos!
Bastava que ele tivesse usado uma janela de
alumínio bastante espessa, de tal modo que os
elétrons não pudessem atravessá-la, para ter
um feixe de raios X!. Lenard ficou
profundamente desapontado por ter deixado
escapar essa descoberta, e jamais usou o nome
de Roentgen quando se referia aos raios-X. O fortuito 8 de novembro de 1895Na última década do século passado, as
pesquisas sobre os raios catódicos constituíam
o tema mais efervescente em toda a Europa, de
modo que parece natural o desejo de Roentgen,
então diretor do Instituto de Física da
Universidade de Würzburg, de repetir algumas
das experiências divulgadas. A literatura sobre a evolução dos fatos apresenta algumas controvérsias, mas uma coisa parece certa: Roentgen não trabalhou com os raios-X mais do que 3 anos. Além disso, em menos de 8 semanas ele descobriu praticamente todas as propriedades fundamentais desses, escreveu três trabalhos sobre o assunto, e já em 1897 estava de volta aos seus temas favoritos, abandonando um assunto de tanta fertilidade, que proporcionou, direta ou indiretamente, a obtenção do Prêmio Nobel de Física, não apenas a ele (1901), como também a Lenard (1905), Thomson (1906), Laue (1914), W.H. Bragg e W.L. Bragg (1915), Barkla (1917) e Siegbahn (1924). Numa carta enviada em fevereiro de 1896 ao seu grande amigo Ludwig Zehnder, Roentgen diz que, durante os experimentos, não falou a ninguém sobre o seu trabalho, exceto à sua esposa. Pouco se sabe o que de fato ocorreu naquelas 8 semanas, entre 8 de novembro e 28 de dezembro, quando Roentgen encaminhou ao presidente da Sociedade de Física e Medicina de Würzburg (SFMW) um manuscrito, intitulado Sobre um novo tipo de raios ("On a new kind of rays", ou, em alemão, "Ueber eine neue art von strahlen"), que ele considera como uma comunicação preliminar. Pela profundidade e concisão com que os resultados são apresentados, não surpreende que este tenha sido o mais importante dos três trabalhos publicados por Roentgen. Em 9 de março de 1896 ele envia, à mesma sociedade, sua segunda comunicação, com o mesmo título da primeira. Na edição de 23 de janeiro de 1896, Nature publica uma versão inglesa da primeira comunicação, sendo imediatamente reproduzida em Science, Scientific American Supplement, Journal of the Franklin Institute e na revista popular Review of Reviews (semelhante a Reader’s Digest). A revista alemã Annalen der Physik, em sua edição de 1o de janeiro de 1898, reproduz os três artigos. Cópias do primeiro trabalho, com a radiografia de uma mão, foram enviadas, entre o final de dezembro e o início de janeiro, aos principais cientistas da Europa, que assim tomaram conhecimento da grande descoberta, uma vez que os anais da SFMW tinham circulação bastante limitada, praticamente local. Roentgen recebeu inúmeros convites para conferências, mas parece que declinou de todas, excepto uma, apresentada na SFMW, em 23 de janeiro de 1896, na qual obteve enorme sucesso, apesar da sua reconhecida timidez. Nessa conferência, ele tirou várias radiografias, inclusive uma que ficou famosa, da mão do grande anatomista, professor da Universidade de Würzburg, A. von Kölliker. A cada radiografia que ele conseguia, a audiência reagia com entusiasmo e estrondoso aplauso. As duas primeiras comunicaçõesAs duas primeiras comunicações de Roentgen, que ele considerava como uma única, são belos exemplos de objetividade e concisão, sem deixar de lado a profundidade que o tema requer. Impressiona a quantidade de dados obtidos em tão pouco tempo, mas frustra a expectativa do leitor interessado na heurística da investigação e na montagem do equipamento. Não há qualquer informação detalhada nesse sentido. Ele informa que usou uma grande bobina de Ruhmkorff, mas não especifica que tipo de tubo de vácuo usou. Mais adiante discutirei essa questão. Os resultados são apresentados em 21 tópicos, muitos dos quais contendo um único parágrafo, ao longo dos quais Roentgen discute praticamente todas as propriedades fundamentais dos raios-X. Na ordem em que aparecem nas comunicações, são as seguintes essas propriedades. Em primeiro lugar, os raios podem ser detectados através de cintilações numa tela fosforescente, ou de impressões numa chapa fotográfica. Diferentemente dos raios catódicos, os raios X podem ser observados mesmo quando a tela é colocada a uma distância de aproximadamente dois metros do tubo de vácuo (os raios catódicos não ultrapassam mais do que oito centímetros no ar). Roentgen testa a transparência de uma quantidade enorme de materiais, verificando que duas propriedades são importantes: a densidade do material e a espessura; quanto mais denso e mais espesso, menos transparente. Depois de testar a transparência, Roentgen investiga efeitos de refração e de reflexão. Não observa nem um nem outro, embora tenha ficado em dúvida quanto à reflexão. Tenta defletir os raios-X com o auxílio de uma campo magnético, mas não consegue, e aqui estabelece uma das fundamentais diferenças, do ponto de vista experimental, entre os raios X e os raios catódicos, pois estes são facilmente defletidos por uma campo magnético. No tópico 12 ele discute uma das questões mais fundamentais para a identificação dos raios X. Ele conclui que esses raios são produzidos pelos raios catódicos na parede de vidro do tubo de descarga! Na sequência ele informa que observou raios-X produzidos pelo choque de raios catódicos numa chapa de alumínio, e promete testar outros materiais. Um ano depois, em 17 de dezembro de 1896, o físico inglês Sir George Stokes demonstrou que os raios-X são produzidos pela desaceleração de partículas carregadas, um fenômeno que ocorre quando, por exemplo, elétrons com alta energia penetram num material pesado! Ou, na linguagem da época, quando os raios catódicos penetram num material pesado! No tópico 17, que encerra a primeira comunicação, ele discute a natureza dos raios-X. Obviamente descarta a identidade com os raios catódicos. Sugere que poderia ser algo como a luz ultravioleta, devido aos efeitos fluorescentes e à impressão de chapas fotográficas, mas no cotejamento de outras propriedades chega à conclusão de que os raios-X não podem ser da mesma natureza da luz ultravioleta usual. Finaliza o artigo sugerindo que os raios-X poderiam ser vibrações longitudinais no éter. Como se sabe, essa hipótese era usada pelos alemães (Goldstein, Hertz, Lenard e outros) para explicar os raios catódicos. No início da segunda comunicação, tópico 18, Roentgen examina o efeito dos raios-X sobre os corpos eletrizados, fazendo referência aos resultados publicados por Lenard. De imediato sugere que os efeitos atribuídos por Lenard aos raios catódicos, eram, de fato, devidos aos raios X produzidos na janela de alumínio do seu tubo de vácuo. (Lenard estava com os raios X ali, na sua frente, e não sabia!) Nos tópicos finais, 19, 20 e 21, discute questões de ordem prática: operação da bobina de indução, manutenção do vácuo e diferença entre alumínio e platina, no que concerne à intensidade do feixe produzido. O que mais, além do acaso?Para se entender a descoberta dos raios-X
como fruto de um planejado trabalho
científico, muito mais do que um evento
fortuito, seria necessário o conhecimento da
heurística que orientou o planejamento da
pesquisa. Infelizmente, Roentgen não dá
qualquer esclarecimento sobre essa heurística.
Como vimos acima, seus relatos descrevem
objetivamente os resultados obtidos, sem
grandes elocubrações ou conjecturas teóricas.
Ao historiador resta a alternativa de
especular, a partir de fatos conhecidos, na
tentativa de montar um esquema racional
plausível para a grande descoberta. Duas
dúvidas jamais foram esclarecidas na
literatura:
Numa entrevista concedida a um jornalista, em janeiro de 1896, Roentgen informa que estava usando um tubo de Crookes no momento da descoberta (8 de novembro de 1895). Numa carta enviada a Zehnder (fevereiro de 1896), ele diz que usou uma bobina de Ruhmkorff 50/20 centímetros, com interruptor Deprez, e aproximadamente 20 amperes de corrente primária. O sistema é evacuado com uma bomba Raps, ao longo de vários dias. Os melhores resultados são obtidos quando os eletrodos da descarga estão afastados por uma distância de aproximadamente 3 cm. Mais uma vez, não especifica o tipo de tubo usado; diz apenas que o fenômeno pode ser observado em qualquer tipo de tubo de vácuo, inclusive em lâmpadas incandescentes. Que Roentgen descobriu os raios X por acaso, parece não haver dúvida. De que outra forma algo tão inesperado poderia ser descoberto? Agora, sobre o que não se tem certeza é exatamente qual foi o acidente que proporcionou a descoberta, e em que momento ele ocorreu. É difícil de imaginar que no primeiro arranjo experimental Roentgen tenha envolvido o tubo com a cartolina. O que ele esperava ver atravessando a cartolina preta, senão raios-X? Como é possível, em menos de dois meses, alguém abordar aquela enorme quantidade de aspectos fundamentais de um fenômeno desconhecido, por mais genial que seja? Por outro lado, se o verdadeiro momento da descoberta não é o 8 de novembro, qual a razão para Roentgen fazer-nos crer que esta é a data correta? Puro acidente ou não, o fato é que a repercussão da descoberta foi de tal ordem que, com muita justiça, o primeiro Prêmio Nobel de Física (1901) foi concedido a Roentgen. A repercussão imediataEm termos de repercussão imediata, a descoberta dos raios-X parece ser um caso único na história da ciência. A observação do eclipse solar de 1919, que comprovou parte da teoria da relatividade geral de Einstein, é um rival de respeito quando se considera a repercussão na imprensa, mas não chega a competir, nem de leve, quando se considera a repercussão no meio científico (A recente descoberta das cerâmicas supercondutoras também teve forte impacto na imprensa e na comunidade científica, mas não temos conhecimento quantitativo desse impacto). As notáveis aplicações na medicina foram imediatamente percebidas pelo próprio Roentgen, que fez uma radiografia da sua mão. Pesquisadores em todo o mundo passaram a repetir a experiência de Roentgen, não apenas na tentativa de descobrir novas aplicações, como também com o objetivo de compreender o fenômeno, uma tarefa que desafiou a inteligência humano ao longo de quase três décadas. A primeira grande questão referia-se à natureza da radiação. Aliás, o levantamento do noticiário feito por Jauncey mostrou a confusão que se fazia entre raios-X e raios catódicos. Não apenas os jornais usavam indistintamente esses dois termos, mas também alguns físicos. É importante salientar que a descoberta de que os raios catódicos eram elétrons foi feita por Thomson dois anos após a descoberta de Roentgen. Mesmo os cientistas que não confundiam raios catódicos com raios-X, não sabiam do que se tratava essa coisa descoberta por Roentgen. Existiam duas escolas de pensamento. Uma, à qual pertenciam os ingleses Thomson e Stokes, acreditava que os raios-X eram vibrações transversais no éter, da mesma forma como a luz ordinária. A outra escola, à qual pertencia o alemão Lenard, defendia que os raios-X eram vibrações longitudinais no éter. Depois de extensivos experimentos, a polêmica foi decidida favoravelmente à escola inglesa. Quando, em 1905, Einstein propôs a idéia do quantum de energia, que anos depois ficou conhecido como fóton, um conceito que admitia um caráter corpuscular para a luz, foi possível calcular o comprimento de onda associado aos raios-X, mas evidências experimentais do caráter corpuscular só surgiram com os trabalhos de Bragg, depois de 1908. Por volta de 1912 mais confusão veio à tona. Naquele ano, Laue e seus estudantes W. Friedrich e P. Knipping descobriram a difração dos raios X em cristais de sulfeto de zinco (ZnS), uma experiência definitiva para o estabelecimento do caráter ondulatório dos raios-X. A confusão causada por essa dualidade só foi resolvida com os trabalhos de de Broglie, a partir de 1923. Portanto, a visão que se tem hoje dos raios-X, é que eles pertencem ao espectro eletromagnético, e como tal apresentam a dualidade partícula-onda: dependendo das circunstâncias, evidenciam propriedades corpusculares ou ondulatórias. Ao espectro eletromagnético pertencem a luz visível, as ondas de rádio, o ultravioleta, o infravermelho e as radiações gama. Fundamentalmente, o que diferencia uma radiação de outra é o comprimento de onda. Para se ter uma idéia, o comprimento de onda da luz visível é mil vezes maior do que o dos raios-X. Como os raios-X são produzidosNas suas publicações Roentgen não especifica o tipo de equipamento utilizado, mas não é difícil imaginar os possíveis componentes do seu arranjo experimental: uma bateria de corrente contínua, uma bobina de indução, um tubo de vácuo e uma bomba de vácuo. Incrementados por fantásticos desenvolvimentos tecnológicos, e recebendo diferentes denominações, esses componentes continuam em uso na moderna pesquisa científica. Na época de Roentgen, eles eram conhecidos pelos nomes dos seus descobridores. Assim, as principais baterias eram as de Volta (inventada em 1800) e as de Bunsen (1843). Entre as bobinas de indução, as de Ruhmkorff (1851) eram as mais famosas. No que se refere à utilização do vácuo, a
primeira experiência que se tem notícia foi
realizada pelo italiano Gasparo Berti, por
volta de 1640. A partir desses experimentos,
passando pelo barômetro de Torriceli (1644) e
pela primeira bomba de vácuo construída por
Guericke (1650), chegamos às diversas bombas
disponíveis no final do século passado, entre
as quais destacam-se: a bomba de pistão-duplo
de Hauksbee (1709), as bombas de mercúrio de
Geissler (1855), de Toepler (1862) e de
Sprengel (1873), e a bomba de óleo de Fluess
(1892). Na carta enviado a Zehnder, Roentgen
informa que usou uma bomba Raps, cuja
descrição não se encontra na literatura
pertinente. A título de recuperação histórica, apresentaremos breves descrições dos possíveis equipamentos utilizados por Roentgen. A bobina de Ruhmkorff, funcionando segundo o princípio do transformador de corrente, é capaz de produzir altas voltagens. Ela contém duas bobinas enroladas em um núcleo de ferro, e isoladas entre si. A bobina interna (primária) é feita com um fio relativamente curto (de 30 a 50 metros), enquanto a externa (secundária) é feita com um fio muito longo (centenas de quilômetros). Para o funcionamento do equipamento, usa-se uma baterial de corrente contínua (p. ex. bateria de Volta) para fornecer uma determinada voltagem à bobina primária. Quando a corrente é subitamente interrompida, uma voltagem maior é induzida na bobina secundária. O fator de transformação da voltagem é proporcional à razão dos comprimentos dos fios. As bobinas utilizadas no final do século passado produziam tensões de milhares de volts A interrupção da corrente pode ser realizada, por exemplo, com o auxílio de um interruptor usado nas transmissões telegráficas de código Morse. As potências dessas bobinas, medidas pelo comprimento da centelha que elas produziam, serviam para classificar os laboratórios da época. Para se ter uma idéia da ordem de grandeza, a Royal Institution of London preserva uma grande bobina de Ruhmkorff com 280 milhas de fio na bobina secundária, e capaz de produzir centelhas com 42 polegadas de comprimento. Parece certo que o primeiro tubo de vácuo utilizado por Roentgen foi um tubo de Lenard, mas, aparentemente, ele comprou outros tubos de raios catódicos convencionais. A diferença essencial entre um e outro tipo de tubo, é que o de Lenard possui uma janela de alumínio, projetada para permitir o estudo dos raios catódicos no seu exterior. Confeccionados em vidro, esses tubos possuíam apenas dois eletrodos no seu interior. Com o uso cada vez mais frequente dos raios-X, outros tubos passaram a ser construídos. Até 1913, o mais usado era o tubo de focalização, mas logo depois passou a ter larga aceitação o tubo de Coolidge, um modelo ainda usado nos dias atuais. Do que se sabe, podemos imaginar o seguinte
procedimento adotado por Roentgen: os
terminais da bobina de Ruhmkorff foram ligados
aos eletrodos do tubo de vácuo; com a
manipulação de um interruptor do tipo
telégrafo alta voltagem era produzida entre os
terminais; o choque do feixe de raios
catódicos (elétrons) com o anodo (eletrodo
positivo) produzia os raios-X. Na essência, o
procedimento utilizado atualmente é o mesmo.
Costuma-se distinguir dois tipos de raios-X
produzidos nesse processo (veja detalhes mais
adiante, sobre os conceitos elementares de
raios-X). Um deles constitui o espectro
contínuo, bremsstrahlung em alemão, e
resulta da desaceleração do elétron durante a
penetração no anodo. O outro tipo é o raio-X
característico do material do anodo. Assim,
cada espectro de raios-X é a superposição de
um espectro contínuo e de uma série de linhas
espectrais características do anodo. Os Raios-X e a Tabela PeriódicaPor volta de 1913, Moseley mediu as frequências das linhas espectrais dos raios-X característicos de cerca de 40 elementos. A partir do gráfico da raiz quadrada da frequência versus o número atômico Z do elemento, ele obteve uma relação que passou a ser conhecida como lei de Moseley (veja detalhes mais adiante sobre os conceitos elementares de raios-X). A repercussão imediata deste resultado foi a alteração da tabela periódica. Esse trabalho de Moseley teve papel importantíssimo na consolidação e aceitação internacional do modelo de Bohr. Na verdade, foi o primeiro dos trabalhos experimentais a confirmar as predições de Bohr. Em carta escrita a Bohr no dia 16 de novembro de 1913, Moseley observa que a sua fórmula poderia ser escrita numa forma idêntica àquela obtida com o modelo de Bohr. Antes do trabalho de Moseley o número atômico
era associado à posição do átomo na tabela
periódica de Mendeleev, a qual distribuía os
elementos de acordo com o seu peso. Moseley
mostrou, por exemplo, que o argônio deveria
ter Z=18, ao invés de Z=19 (conforme a tabela
de Mendeleev). Por outro lado, o potássio
deveria ter Z=19, ao invés de Z=18. Ele também
mostrou que o cobalto deve preceder ao níquel,
apesar do peso atômico do Co ser maior do que
o do Ni. De acordo com Mendeleev, o número
atômico era aproximadamente igual à metade do
peso atômico. Moseley definiu o número atômico
como igual ao número de elétrons do átomo
eletricamente neutro. A lei de Moseley apresentava resultados
bastante diferentes daqueles do paradigma
científico vigente. Através dela Moseley
deduziu que entre o hidrogênio e o urânio,
deveria haver exatamente 92 tipos de átomos,
cujas propriedades químicas eram governadas
por Z, e não pelo peso atômico. Isto
significava dizer que a tabela periódica devia
seguir a ordem crescente do número atômico e
não a do peso atômico. Obedecida essa
sequência, alguns lugares daquela tabela
ficaram vagos, os correspondentes a Z = 43,
61, 75, 85 e 87. O grande estudioso das terras raras era Georges Urbain, sendo ele inclusive o descobridor de uma delas, o lutécio (Z=71), em 1907. Em 1911, Urbain pensou ter isolado uma outra terra rara, com Z=72, a que chamou de céltio. No entanto, os métodos químicos de análise até então usados eram complicados e incertos. Ao ouvir falar, em 1914, do método de Moseley, Urbain deslocou-se da França para a Inglaterra, levando amostras de terras raras, inclusive uma do provável céltio. Em poucas horas Moseley as examinou e as classificou sem, no entanto, confirmar o céltio. A amostra deste, observou Moseley, nada mais era do que uma mistura de terras raras conhecidas. Urbain ficou tão impressionado com o trabalho de Moseley que resolveu divulgá-lo no comunidade dos químicos. Apesar dessa postura, Urbain continuou acreditando ser o elemento Z=72 uma terra rara, e prosseguiu em sua busca. Quase 10 anos depois foi descoberto que o número atômico 72 pertencia a um novo elemento químico, denominado háfino. Com relação aos elementos previstos por
Moseley, é oportuno salientar que o elemento
75, o rénio, foi descoberto em 1925, pelo
casal Noddack. O elemento 87, descoberto em
1939, por Marguerite Perey, recebeu o nome de
frâncio e pertence a uma família radioativa
natural. Os demais elementos (43, 61 e 85)
foram obtidos artificialmente. Sendo suas
vidas-médias muito curtas, esses elementos não
podiam ser naturalmente produzidos, ou pelo
menos observados. No próximo artigo tratarei da tomografia
computadorizada
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Hospital do Coração de Natal O laboratório onde Roentgen descobriu os raios-X Bobina de Ruhmkorff similar à usada por Roentgen Radiografia da mão esquerda de Anna Bertha Ludwig, esposa de Roenrgen Descarga elétrica em gases rarefeitos é o que ocorre nas lâmpadas fluorescentes Tubo de raios-X utilizado por Moseley Esquema representando a produção dos raios-X pelo choque de elétrons contra o eletrodo de metal Resultados experimentais obtidos por Moseley |
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