De um modo geral, quando
alguém ouve ou lê a palavra radioatividade, o primeiro pensamento é
sobre a bomba nuclear, sobre Hiroshima e Nakasaki e sobre a Segunda
Guerra Mundial. Isso faz sentido, pois a primeira vez que o cidadão
comum tomou conhecimento desse fenômeno da natureza foi em agosto de
1945, quando os EUA lançaram uma bomba nuclear sobre Hiroshima, no dia
6, e três dias depois lançaram outra sobre Nagasaki. |
Não veremos aqui este lado triste da radioatividade, veremos o lado glorioso da sua história, começando pelo lado científico. |
Então,
prepare-se para conhecer como a radioatividade permitiu o
aprofundamento do conhecimento da estrutura da matéria, como ela
possibilitou a criação de muitas aplicações civis, sobretudo a geração
de energia elétrica e as várias aplicações na medicina, como bem ilustra a figura ao lado, na qual vemos, ao fundo, um
aparelho para realização de ressonância magnética nuclear. No primeiro
plano, a sala de controle. Cortesia do Hospital do Coração de Natal. |
A descoberta da radioatividade resultou de experimentos realizados por
Henri Becquerel, em fevereiro de 1896. Ele observou que o sulfato duplo de urânio e potássio, também conhecido como sulfato de uranilo ou sulfato de uraninita,
era capaz de sensibilizar uma chapa fotográfica, do mesmo modo como os
raios-X, descobertos por Roentgen em novembro do ano anterior. Becquerel apresentou seus resultados na Academia Francesa de Ciência, mas ao longo de dois anos, nem ele, nem qualquer outro cientista conseguiu explicar a que se devia aquele fenômeno, que ele chamava de fosforescência invisível. |
Dois anos depois, a partir do início de 1898, Marie e Pierre Curie fizeram descobertas importantíssimas que lhes permitiram explicar com grande precisão o fenômeno, ao qual eles deram o nome de radioatividade, e denominaram de radioativos todos os elementos químicos que apresentavam o fenômeno. |
O único elemento radioativo conhecido era o urânio, utilizado por Becquerel em alguns dos seus experimentos. Os primeiros resultados do casal Curie mostraram que havia outro elemento radioativo, o tório, e que este era mais ativo do que o urânio, ou seja apresentava a radioatividade com maior intensidade. Em junho daquele ano eles descobriram um novo elemento radioativo, ao qual denominaram polônio, em homenagem ao país de origem de Marie Sklodowska Curie. Entre novembro e dezembro de 1898 eles descobriram o rádio, o quarto elemento radioativo conhecido até então. |
Por tudo isso, Marie,
Pierre e Becquerel ganharam o Prêmio Nobel de Física em 1903. Em 1911,
Marie Curie ganhou, sozinha, o Nobel de Química, em reconhecimento às
suas contribuições para o avanço da química e pela descoberta dos
elementos rádio e polônio. Ao lado, o diploma do Prêmio Nobel de Química de 1911. |
O que você acabou de ler representa o panorama geral do início da história da radioatividade. Vejamos agora essa história mais detalhadamente. |
Tudo
começou com a descoberta dos raios-X, em novembro de 1895. Wilhelm
Conrad Röntgen, o descobridor, também conhecido como Roentgen, enviou algumas das radiografias, entre as quais uma da mão esquerda de sua esposa, para o professor Franz Exner,
de Viena. Este mostrou a fotografia ao físico Ernst Lecher, cujo pai
era editor do principal jornal de Viena, o Die Wiener Presse. No
domingo, 5 de janeiro de 1896 o jornal estampava em sua primeira página
a descoberta de Roentgen. A notícia se espalhou como um rastiho de pólvora. No dia seguinte saiu no London Daily Chronicle. No dia 7 foi a vez de outro jornal inglês, o Standard, publicar a notícia. No dia 13 o jornal parisiense Le Matin comunicou a descoberta de Roentgen. Só depois dessas comunicações na imprensa diária, é que as principais revistas científicas noticiaram a descoberta: The Electrician (10 de janeiro), The Lancet e The British Medical Journal (11 de janeiro), Nature (16 de janeiro). O artigo de Roentgen, escrito em alemão e publicado na pouco conhecida revista da Sociedade de Física e Medicina de Würzburg, foi traduzido para o inglês e publicado na importante revista inglesa Nature, no dia 23 de janeiro. Foi essa versão inglesa que permitiu ao trabalho de Roentgen ser amplamente conhecido na comunidade científica internacional. |
Além
do professor Exner, outros cientistas famosos receberam o trabalho de
Roentgen e algumas radiografias, com uma dedicatória do autor. Entre os
quais destacam-se: Boltzmann, Warburg, Kohlrausch, Kelvin, Stokes,
König, Wood, Lorentz, Lebedew e Poincaré.
Este último era a grande personalidade da ciência francesa, com
trabalhos importantes sobre filosofia, matemática e física, e foi sua
apresentação na Academia Francesa de Ciências que levou Becquerel a
fazer os experimentos que desembocaram na descoberta da radioatividade. A gravura ao lado registra a visita de Louis XIV, o Rei Sol, à Real Academia de Ciências, em 1671, quase dois séculos antes da descoberta da radioatividade. |
O RELATO DE POINCARÉ NA ACADEMIA FRANCESA DE CIÊNCIAS |
No
dia 20 de janeiro de 1896, Henri Poincaré fez uma conferência na
Academia para apresentar a descoberta de Roentgen. Não vamos entrar em
detalhes porque se trata de um assunto fora do nosso tema. Vamos
discutir apenas as questões apresentadas por Poincaré e que levaram
Becquerel a fazer seus experimentos. O desenho ao lado é um tubo de Crookes usado por Roentgen. Os raios-X são produzidos numa placa de metal no centro do tubo e refletidos na direção marcada com a letra S. |
Ninguém sabia exatamente o que eram os tais raios-X. No tubo aparece um brilho amarelo-esverdeado típico dos materiais fosforescentes. Poincaré imaginou que os raios-X eram produzidos ali, onde se observava a luminescência. Ou seja, deveria haver uma relação entre a emissão dos raios-X e a fluorescência do vidro. |
Dias
depois ele escreveu um artigo na Révue Génerale des Sciences,
concluindo que era o vidro que emitia os raios-X, e conjecturou: será
que todos os corpos que possuem fluorescência suficientemente intensa
emitem raios-X, além de raios luminosos? Foi essa conjectura que motivou Becquerel a realizar os experimentos que permitiram a descoberta da radioatividade. |
Henri Becquerel pertencia a uma ilustre família de cientistas. Seu avô, Antoine Becquerel, nascido em 1788, foi um importante investigador dos fenômenos elétricos e magnéticos, tendo publicado um grande tratado sobre o assunto. O pai de Henri, Edmond Becquerel, notabilizou-se por seus estudos a respeito das radiações ultravioleta e dos fenômenos de fosforescência e fluorescência. Estudara os sulfetos de cálcio, de bário, de estrôncio e alguns sais de urânio. |
No
laboratório de seu pai, Henri Becquerel desenvolveu seu treino
cientifico e realizou suas primeiras pesquisas, quase todas sobre
óptica e muitas delas sobre fosforescência. Entre outras coisas,
estudou a fosforescência invisível (no infravermelho) de várias
substâncias. Estudou, em particular, os espectros de fluorescência de
sais de urânio, utilizando amostras que seu pai havia acumulado ao
longo dos anos. Portanto, Henri Becquerel estava com a faca e o queijo para testar a conjectura de Poincaré. Além de poderem emitir radiação visível e infravermelha, parecia que os corpos luminescentes podiam também emitir raios-X. |
Pouco mais de um mês após a palestra de Poincaré, e dois meses após a descoberta dos raios-X, exatamente no dia 24 de fevereiro, Becquerel já estava apresentando seus primeiros resultados à Academia. Entre os materiais fosforescentes que ele tinha em seu laboratório ele escolheu o sulfato duplo de urânio e potássio. Ele não escolheu esse material porque continha urânio. Escolheu porque era fosforescente, simplesmente para testar a conjectura de Poincaré. |
Becquerel
envolveu uma chapa fotográfica em duas folhas de papel negro muito
espesso, de tal forma que a chapa não fosse atingida pela luz do Sol,
mesmo exposta durante um dia. Sobre o papel ele colocou os cristais de
sulfato duplo de urânio e potássio e expôs o conjunto ao Sol durante
várias horas. Quando a chapa foi revelada apareceu a silhueta da
substância fosforescente, que apareceu negra no negativo. Ele repetiu
esse experimento colocando objetos entre os cristais e a chapa
fotográfica protegida com papel negro. Em um desses experimentos ele
colocou uma moeda, que foi claramente vista no negativo. |
Radiografia de uma moeda, obtida por Becquerel em fevereiro de 1896. |
Becquerel
concluiu que a substância fosforescente emite radiações que penetram um
papel opaco à luz e sensibilizam a chapa fotográfica, justamente como
faziam os raios-X. Isso confirmava a conjectura de Poincaré. Ou seja,
materiais fosforescentes emitem raios-X. Uma conclusão erradíssima, mas Becquerel não tinha como saber que estava errado. E para complicar a história, ele fez um experimento que o enganou e que toda a comunidade científica considera como a descoberta da radioatividade. Um impressionante erro histórico. Vejamos como isso aconteceu. Dois dias depois de sua apresentação na Academia, Becquerel planejou fazer novos experimentos. Preparou tudo como descrito acima, mas naqueles dias 26 e 27 de fevereiro o céu de Paris estava muito nublado. Becquerel guardou o material numa gaveta. Como nos dias seguintes o céu continuava nublado, Becquerel resolveu revelar a chapa no dia 1 de março, esperando encontrar imagens muito fracas, pois os cristais de sulfato duplo de urânio e potássio não haviam sido submetidos à luz solar. Você lembra, não é? Becquerel achava que a radiação que saía do sulfato devia-se à sua fosforescência excitada pela luz solar. Sabe o que ele observou nesse experimento sem a luz solar? Uma mancha mais intensa ainda que as anteriores. Um resultado completamente inesperado. A mancha deveria ser fraquinha mas, ao contrário, era muito forte. Becquerel não percebeu que aquilo era algo diferente. Claro, sabemos hoje que era um novo fenômeno, era a radioatividade, mas Becquerel pensou que era apenas a fosforescência que havia continuado no escuro. |
A figura ao lado é a imagem obtida por Becquerel. Ele colocou uma fina cruz de cobre entre os cristais e a chapa fotográfica. Em vez de pensar que se tratava de um novo fenômeno, Becquerel concluiu que se tratava de uma fosforescência invisível infinitamente persistente, ou seja muito maior do que a persistência da fosforescência visível já conhecida por ele. |
Passaram-se quase dois anos com toda a comunidade científica dedicada ao tema acreditando nessa hipótese, mas os estudos não avançavam. O tema parecia estagnado, sem qualquer novidade. Foi aí que apareceu Marie Curie, querendo fazer uma tese de doutorado. Na busca que fez para encontrar um tema, ela considerou que os raios de Becquerel, ou raios de urânio, poderiam ser interessantes. Por que poderiam ser interessantes? Porque ela considerava que o assunto ainda não tinha sido bem explicado, e que estava meio abandonado pela comunidade científica. Ou seja, o assunto estava prontinho para ser investigado por alguém mais competente que Becquerel. |
Entre os resultados obtidos por Becquerel e outros pesquisadores entre 1896 e 1897, teve um que chamou a atenção de Marie. Alguns pesquisadores mostraram que o urânio e seus compostos tinham a capacidade de ionizar o ar, ou seja tornar o ar condutor de eletricidade. |
Para
estudar as radiações do urânio e seus compostos a partir de suas
capacidades de ionização do ar, Pierre e Marie inventaram um
equipamento, conhecido como câmara de ionização, que media com muita
precisão a ionização do ar. Na foto, Madame Curie, Pierre (ao centro) e o Senhor Petit, auxiliar de laboratório. Uma parte desse equipamento foi desenvolvido por Pierre e seu irmão, Jacques Curie. |
Foi
essa ideia de usar a ionização do ar que lhes permitiu compreender o
fenômeno e descobrir outros elementos radioativos. Por quê? Pela
precisão nas medidas. Em vez de observar o efeito das radiações por
meio de manchas em uma chapa fotográfica, eles podiam observar esses
efeitos por meio da medida de correntes elétricas com grade precisão. As primeiras anotações no caderno de laboratório de Marie Curie datam de 16 de dezembro de 1897. Com a câmara de ionização ela queria medir a energia liberada pelo urânio durante o processo de irradiação e queria também testar outros elementos. Ela começou medindo a capacidade de ionização de uma amostra de urânio puro, fornecida por um amigo que era químico. Depois foi juntando amostras de diferentes materiais fornecidas por outros químicos e por colegas que trabalhavam no Museu de História Natural de Paris. A maioria desses materiais apresentou resultado negativo. Ou seja, não eram capazes de ionizar o ar. Parecia que a coisa não ia dar em nada. |
Foi
um breve momento de decepção, mas Marie era persistente e perspicaz. No
dia 17 de fevereiro de 1898, dois meses depois de ter iniciado seu
projeto, Marie analisou uma amostra de pechblenda, um mineral rico em
óxido de urânio, e que depois passou a ser conhecido como uraninita. É
aqui que realmente começa a história da descoberta da radioatividade.
Observe no relato a seguir como a Madame Curie era perspicaz. |
Logo nas primeiras medidas, Marie observou que essa amostra de pechblenda produzia uma ionização mais intensa que a do urânio puro.
Ela pensou que o equipamento não estava funcionando bem. Fez testes de
calibragem do equipamento e no dia seguinte voltou a medir a ionização
produzida pela urânio puro, por outros compostos de urânio, e pela
pechblenda. Todos os compostos produziam menos ionização do que urânio
puro, exceto a pechblenda. Marie continuou examinando outros materiais, até que no dia 24 de fevereiro ela teve outra surpresa ao descobrir que o mineral eschinita também produzia ionização maior do que o urânio. O problema é que esse mineral não contém urânio. Contém, ferro, cálcio, cério, titânio, nióbio e tório. Foi assim que Marie descobriu que o tório é mais radioativo que o urânio. Restava o mistério da pechblenda. Com isso, Marie chegou a uma conclusão importante: os raios que Becquerel chamava de urânicos, não eram devidos unicamente ao urânio. O tório também produzia esses raios, assim como algo na pechblenda. Ou seja, tudo aquilo indicava que havia um fenômeno mais geral do que uma simples anomalia apresentada pelo urânio. Foi uma grande sacada da Madame Curie, mas como encontrar esse “algo” na pechblenda que produzia raios urânicos mais intensos do que o próprio urânio? Uma solução seria purificar a pechblenda até encontrar o elemento químico responsável pelo efeito. Então, Marie iniciou um cansativo trabalho de purificação química da pechblenda. Após cada estágio analisava partes do material e purificava aquela que apresentava a maior intensidade na ionização. Passou duas semanas fazendo isso até que chegou a um material considerado suficientemente puro. Infelizmente as análises químicas mostraram que o material não era puro. Ficou provado que precisava da ajuda de um químico, e Gustave Bémont (1857-1937) foi o escolhido. Com suas bem cuidadas análises, Bémont e o casal Curie chegaram à conclusão que havia dois elementos altamente ativos na amostra de pechblenda. Um que sempre ficava grudado ao bário (Ba) e outro que se juntava ao bismuto (Bi). Decidiram investigar primeiro o elemento junto do bismuto. |
Naquele
período foi impossível separar o elemento ativo do bismuto. As análises
químicas de Bémont e as análises espectroscópicas feitas por Eugène
Demarçay (1852-1903) só mostravam sinais do bismuto, mas os resultados
com a câmara de ionização eram incontestáveis. Havia naquela amostra um
elemento 400 vezes mais ativo que o urânio. No dia 18 de julho de 1898, Becquerel apresenta à Academia o trabalho de Marie e Pierre Curie propondo a existência de um novo elemento químico que eles denominaram polônio, símbolo Po, em homenagem à Polônia, país de nascimento de Marie. O polônio tinha propriedades químicas muito similares ao bismuto e por isso sua separação pelos processos químicos ainda não tinha sido possível. O título do artigo, Sobre uma nova substância radioativa contida na pechblenda, trazia pela primeira vez a palavra radioativa. Foi a partir daí que eles definiram radioatividade, para o fenômeno das emissões inicialmente observadas por Becquerel, e chamaram de elementos radioativos todos os que apresentavam o fenômeno. O polônio só foi isolado nos anos 1930. |
No
início de novembro de 1898 eles começaram a busca do outro elemento
radioativo, aquele que ficava próximo ao bário. Menos de três semanas
depois, e sempre com a ajuda de Bémont, eles concluíram que havia um
elemento 900 vezes mais ativo do que o urânio. Dessa vez, a espectroscopia realizada por Demarçay mostrava claramente que havia um novo elemento químico na amostra de bário, embora em quantidade tão pequena que sua separação era muito difícil. Por volta de 20 de dezembro, Pierre Curie escreveu no centro da página do caderno do laboratório o nome do novo elemento radioativo: Radium
Em sua forma metálica, o rádio, cujo símbolo é Ra, foi isolado em 1911, por Marie Curie e André-Louis Debierne (1874-1949). |